24.11.05

Neblina




"...amor só mente para dizer maior verdade"
Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas.



Pensei nele. Beijos na boca de novo. Carinho na cabeça, abraço na sala. E sorriso sem graça. O estranhamente familiar.
Aí me lembro de nós dois numa padaria na Major Diogo, indo para o teatro ver "Parlapatões". Lembro dele de gravata, me esperando no carro vermelho, em frente ao meu trabalho. E a gente lendo Clarice juntos, no trânsito. Lembro de fazer massagem, sentada em suas costas. E um dia chuvoso, parados debaixo de um viaduto. E ele me chamando de meu amor, falando com o irmão, da rua dos Pinheiros. Dormindo na sala, vendo Fellini. Bienal do livro lá longe, de metrô. Transar rapidinho antes do irmão chegar, e me abraçar enquanto eu passava o aspirador na sala. Tanta lembrança. Foi o que ficou dele em mim. "A gente estava desagasalhados na alegria, feito meninos"*.
É saudade. Saudade de amor.
Sinceramente, eu queria que a gente não tivesse se perdido. Mas hoje não faz mais nenhum sentido lamentar a separação. E essa saudade não lamenta, não espera, não está ligada às nossas vidas hoje. Sinto saudade do que fomos. Daquele amor dele, que mesmo por trás do pano, era meu. Do meu amor, que mesmo atabalhoado, era dele.
Isso não tem a ver com "voltar". Como se volta ao que éramos? É possível "voltar"? E a questão é "voltar"?
É saudade, só. É lembrança. Não vamos nunca mais voltar, e, felizmente, digo isso sem nenhum pesar. Não somos mais as mesmas pessoas.
Não sei o que a vida nos reserva, nunca sabemos. Mas sentindo e saboreando (por que não?) essa saudade, eu descubro que é possível sentí-la sem mais. Lembrar. Sentir saudade de um tempo, que não volta.
É novo para mim sentir assim. Teve um tempo que eu senti medo de sentir saudade. Precisava matar. Deve ser assim com todo mundo, com tudo que foi grande.
E agora, de repente, me deu uma tranquilidade saber que a gente não "volta".
Uma desobrigação.
Saudade, saudade e só. E a vida continua.
Mas então será que tem gente que a gente não esquece?
Não sei a resposta, sou apenas uma-menina-de-vinte-e-seis-anos. Sei que já aconteceram outras historinhas depois dele. Paixõeszinhas, até. Bacanas também. Das quais não sinto saudades, não lembro detalhes. Mas, enfim, eu quase que nada não sei, né, Guimarães?
E não foi o Guimarães que disse, através do Riobaldo: "Diadorim é minha neblina"? Linda metáfora.
Sei que vim aqui dizer para mim, que sobre essa minha história de amor, hoje eu senti saudade, eu lembrei, eu guardo e carrego comigo. Minha história, que eu vejo com meus olhos, e que não me causa mais ansiedade, nem culpa, nem dúvida. Não sei como cheguei aqui, mas se me fosse dado escolher, era aqui que eu queria estar. Não sei muito mais dessa neblina. Mas sei que quando os olhos dele encontraram os meus, vi, também, a mesma neblina.

*é "Grande Sertão: veredas" também.

3 Comments:

Blogger Giu! said...

Uau, que lindo, fez a trapalhona lacrimejar. Mimimi.

9:24 AM, novembro 24, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Me fazer começar a sexta-feira chorando - mesmo, com lágrimas escorrendo é sacanagem.
Saudade é foda!!!

10:10 AM, novembro 25, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Kellen, que texto maravilhoso! Genial esse tema da saudade sem culpa nem desgosto, saudade só, plena e boa. E esta frase aqui é linda: "Não sei como cheguei aqui, mas se me fosse dado escolher, era aqui que eu queria estar." Parabéns!
Aquele Abraço!

11:44 AM, novembro 27, 2005  

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