De Caio Prado a Guaianases
Faz um tempo que reluto em encarar essa tarefa. Quero contar para vocês sobre minhas experiências “de campo”. Odeio o termo, mas ele está aqui de propósito, para dar o teor da narrativa.
Meu trabalho no centro de pesquisas (pois é, além do mestrado, eu trabalho com pesquisa acadêmica), inclui, algumas vezes, trabalho de campo, entrevistas, coletas de dados. Dessa vez a pesquisa é sobre um programa de atenção à saúde que se localiza, principalmente, em bolsões de pobreza. Já fui a vários lugares, sempre penso em escrever um post, mas nunca sai. Acho que o assunto é espinhoso.
Dessa vez o local era Guaianases. Leste da zona leste. Cerca de uma hora da minha casa, sem trânsito. Muito, muito longe mesmo. Vamos numa equipe de dez pesquisadores (ou mais ou menos isso). A ida foi animada, eu conversava com um colega sobre seu projeto de mestrado, e fomos de “Quanto vale ou é por quilo?” a Caio Prado Junior, e a possibilidade de esfera pública no Brasil, enfim... Discussão densa, a caminho do “campo”.
Chegando lá, cada um vai procurar seus “entrevistados”. Começa a luta. As casas, em sua maioria, não tem numeração, e quando tem, é irregular. O negócio é encontrar o pessoal pelo “boca a boca”. E é incrível como tem sempre alguém disposto a ajudar. E depois, passam por nós e perguntam, sorrindo: “achou a casa, moça?”. Sorrindo. Resta saber exatamente de quê.
Uma das ruas que fui chamava rua do Córrego. Fácil entender o motivo do nome: um córrego cortava a rua de terra de ponta a ponta. Era esgoto a céu aberto. As crianças que me mostraram algumas casas brincavam à beira. O odor, bem desagradável.
E por falar nelas, as crianças são muitas, muitas mesmo. As “lojinhas de doces" também. Deve ser complicada a equação muito consumo de doce + nenhum dentista no posto de saúde público. Enfim.
Muitas vielas compõem o cenário. As casas, incrivelmente minúsculas, sem ventilação, uma em cima da outra. Muitas delas têm cachorros. O cenário também tem bares, muitos. Muita cachaça. O Chico já contou pra gente que “também sem a cachaça, ninguém segura esse rojão”.
Entrevistei dez pessoas. Dez pessoas solícitas, dez pessoas que me convidaram para entrar. Um deles me parou na rua: “a senhora quer me entrevistar?”. Eu disse que sim, mas ia almoçar naquele momento. Ele respondeu que me esperaria, em sua casa. Sorridente. Na hora da entrevista eu o chamei de senhor até perguntar a idade: 32 anos. Eu não podia imaginar. Mas a vida deixa suas marcas, e o envelheceu uns quinze anos, sem nenhum exagero.
Finalmente chego à última entrevista. Um menino lindo (achei que ele tinha a carinha do pequeno que eu quero adotar, um dia), com cinco anos, aparece no quintal, e depois vem a mãe. Essa não me convida para entrar imediatamente, e depois de uns minutos descubro por que: ela me conta que tem “problemas mentais”. Descubro que sofre de depressão. Estranho nessas condições, é não sofrer.
Ela me chama para entrar, e nessa casa eu decido ficar além dos quinze minutos que duram a aplicação do instrumento de pesquisa. Fiquei um pouco mais de uma hora. Uma necessidade de deixar algo, acho. Ofereci meus ouvidos. Ela contou muitas coisinhas. Que há três anos sofre de depressão, tem crises de auto-flagelação, mas como tem tomado muitos remédios, “está controlada”. Descobri então que seu tratamento, no Hospital Público, consiste na medicalização da depressão, pura e simplesmente. Nenhum acompanhamento terapêutico, e o diagnóstico do médico é o de que ela nunca deixará de tomar os remedinhos que a “controlam”. Três filhos, a mais velha tem treze anos. Ela tem 33. Ao me despedir, ela me pediu um abraço, e disse que eu poderia voltar quando quisesse, para conversar.
Na volta, meus colegas de labuta estavam ainda falantes. Falando de coisas menos sérias, é verdade, afinal, o trabalho foi bem cansativo, muitas ladeiras. Mas eu não queria conversar. Lembrei das “teorizações” da manhã, e me senti tão estranhamente pequena. Só tive vontade de ficar calada, por horas e horas.
Meu trabalho no centro de pesquisas (pois é, além do mestrado, eu trabalho com pesquisa acadêmica), inclui, algumas vezes, trabalho de campo, entrevistas, coletas de dados. Dessa vez a pesquisa é sobre um programa de atenção à saúde que se localiza, principalmente, em bolsões de pobreza. Já fui a vários lugares, sempre penso em escrever um post, mas nunca sai. Acho que o assunto é espinhoso.
Dessa vez o local era Guaianases. Leste da zona leste. Cerca de uma hora da minha casa, sem trânsito. Muito, muito longe mesmo. Vamos numa equipe de dez pesquisadores (ou mais ou menos isso). A ida foi animada, eu conversava com um colega sobre seu projeto de mestrado, e fomos de “Quanto vale ou é por quilo?” a Caio Prado Junior, e a possibilidade de esfera pública no Brasil, enfim... Discussão densa, a caminho do “campo”.
Chegando lá, cada um vai procurar seus “entrevistados”. Começa a luta. As casas, em sua maioria, não tem numeração, e quando tem, é irregular. O negócio é encontrar o pessoal pelo “boca a boca”. E é incrível como tem sempre alguém disposto a ajudar. E depois, passam por nós e perguntam, sorrindo: “achou a casa, moça?”. Sorrindo. Resta saber exatamente de quê.
Uma das ruas que fui chamava rua do Córrego. Fácil entender o motivo do nome: um córrego cortava a rua de terra de ponta a ponta. Era esgoto a céu aberto. As crianças que me mostraram algumas casas brincavam à beira. O odor, bem desagradável.
E por falar nelas, as crianças são muitas, muitas mesmo. As “lojinhas de doces" também. Deve ser complicada a equação muito consumo de doce + nenhum dentista no posto de saúde público. Enfim.
Muitas vielas compõem o cenário. As casas, incrivelmente minúsculas, sem ventilação, uma em cima da outra. Muitas delas têm cachorros. O cenário também tem bares, muitos. Muita cachaça. O Chico já contou pra gente que “também sem a cachaça, ninguém segura esse rojão”.
Entrevistei dez pessoas. Dez pessoas solícitas, dez pessoas que me convidaram para entrar. Um deles me parou na rua: “a senhora quer me entrevistar?”. Eu disse que sim, mas ia almoçar naquele momento. Ele respondeu que me esperaria, em sua casa. Sorridente. Na hora da entrevista eu o chamei de senhor até perguntar a idade: 32 anos. Eu não podia imaginar. Mas a vida deixa suas marcas, e o envelheceu uns quinze anos, sem nenhum exagero.
Finalmente chego à última entrevista. Um menino lindo (achei que ele tinha a carinha do pequeno que eu quero adotar, um dia), com cinco anos, aparece no quintal, e depois vem a mãe. Essa não me convida para entrar imediatamente, e depois de uns minutos descubro por que: ela me conta que tem “problemas mentais”. Descubro que sofre de depressão. Estranho nessas condições, é não sofrer.
Ela me chama para entrar, e nessa casa eu decido ficar além dos quinze minutos que duram a aplicação do instrumento de pesquisa. Fiquei um pouco mais de uma hora. Uma necessidade de deixar algo, acho. Ofereci meus ouvidos. Ela contou muitas coisinhas. Que há três anos sofre de depressão, tem crises de auto-flagelação, mas como tem tomado muitos remédios, “está controlada”. Descobri então que seu tratamento, no Hospital Público, consiste na medicalização da depressão, pura e simplesmente. Nenhum acompanhamento terapêutico, e o diagnóstico do médico é o de que ela nunca deixará de tomar os remedinhos que a “controlam”. Três filhos, a mais velha tem treze anos. Ela tem 33. Ao me despedir, ela me pediu um abraço, e disse que eu poderia voltar quando quisesse, para conversar.
Na volta, meus colegas de labuta estavam ainda falantes. Falando de coisas menos sérias, é verdade, afinal, o trabalho foi bem cansativo, muitas ladeiras. Mas eu não queria conversar. Lembrei das “teorizações” da manhã, e me senti tão estranhamente pequena. Só tive vontade de ficar calada, por horas e horas.
7 Comments:
Agora seu eu quem quer calar... Não sei, mas me deu um aperto aqui... uma coisa além da vergonha, da angústia, do desespero...
Não é culpa. Acho que é raiva. Raiva de não conseguir fazer nada além de produzir indignação.
Sei lá...
Bjs
PS: Apesar de triste, este texto está belíssimo.
Eu também só consigo me calar. Belo texto.
Belo texto querida.
O que vc acha de no futuro levarmos a "minha" psicologia aliada a "sua" sociologia à, pelo menos, parte dessa população tão sem necessitada de atenção, assistência, carinho, compreensão e respeito?
Eu tópo! Aliás acho que a nossa história vai fazer muito mais sentido, não acha?
Beijos,
Lenina
Gostei do seu texto... quer dizer... gostei de você... não, minto... acho que estou descobrindo que gosto de... que gosto da sua escrita... senti que também estou ali... De Caio Prado a Guaianases...
Marcelo.
Oi, minha gente! Obrigada pelos elogios!
Raquel, primeiro, muito bem vinda! A pesquisa é sobre o programa de saúde da família, estamos realizando uma avaliação junto aos usuários.
O Marcelo esteve lá (e em outros "campos") também!
Beijos para todos!
Nossa, a história desse garotinho é comovente, hein ? Boa sorte pra vc na pesquisa, e pra esse povo que precisa tanto de tanta coisa.
Beijos
Kellen
Hoje pela primeira vez estive tb a trabalho em Guaianases. E voltei sem tradução para o que sentia... tristeza? decepção? raiva?
Essa cidade mente, ou estamos todos fingindo...?
Foi então que encontrei esse texto lindo e com ele a tradução do que estou sentindo agora.
Obrigado
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